Luiz Paulo Horta,no O Globo online
A partir da eleição de domingo próximo, que parece decidida, mergulhamos no desconhecido - o que não é uma situação muito agradável. Quem é Dilma Rousseff? Qual o seu programa de governo? Qual vai ser a sua relação com o futuro ex-presidente Lula? E com o PT? Qual a sua capacidade de atuar no principal cargo político da nação, tendo ela até hoje exercido apenas funções de gerente - mesmo que de alto nível?
É, sem dúvida, uma situação esdrúxula. O que os eleitores parecem estar fazendo é conceder ao presidente que se despede o seu terceiro mandato, que ele, com sua refinada esperteza, não tentou conseguir por meios heréticos. Mas isso supõe que Dilma se conforma em ser um zero à esquerda. Alguém apostaria nessa possibilidade?
Também inédita é a situação que o país atravessa, ilustrada com o talento habitual das capas da "Economist" - um mapa das Américas em que o Brasil está em cima, e os EUA embaixo. É uma licença poética, claro; mas ninguém está achando que seja uma piada.
O país cresceu, e firmou-se internacionalmente. Isso não é fruto de um dia, nem de um governo, nem de dois governos. Reportagem anterior da "Economist" contava a história espetacular da nossa "conquista do interior" - em quase tudo semelhante à "conquista do Oeste" nos EUA do século XIX. A partir dos anos 70, sobretudo, a agricultura moderna invadiu as extensões imensas do cerrado, apoiada nos avanços científicos que saíam das retortas da Embrapa.
O resultado disso é que o Brasil deixou de ser o famoso arquipélago, composto de cidades isoladas e de um interior vazio. Com uma rapidez inédita, o que se pode chamar de civilização (pelos nossos padrões) avançou até ir bater nas fronteiras da Amazônia - já agora mordendo as entranhas da floresta.
Isso provocou um deslocamento populacional sem paralelos, e grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo foram bastante sacrificados. Mas agora, as ondas migratórias são absorvidas por cidades médias e mesmo pequenas; e nessa onda da urbanização, o que se considerava uma bomba demográfica recuou para padrões aceitáveis.
Um outro lado desse progresso foi o avanço institucional que se definiu sobretudo a partir do governo Itamar. São 18 anos de experiência democrática razoavelmente consolidada - como se viu na tranquilíssima transição política do tucanato para o lulismo. Nos dois períodos de FHC, realizou-se o que já se desesperava de alcançar, depois de tantos fracassos: um plano econômico que acabou com a loucura inflacionária, que lançou as bases de uma moeda estável - alívio imenso para os pobres, e fonte dos mecanismos de crédito que hoje fazem a felicidade da pequena classe média.
Com sabedoria política acima da média, o presidente Lula, também em dois mandatos, soube continuar e desenvolver o que tinha sido feito. Por um lado, não se afastou da ortodoxia financeiro/monetária, enfrentando e derrotando pressões enormes do PT ideológico. De outro lado, estabeleceu um contato com o "andar de baixo" superior em extensão e em representatividade ao que Vargas conseguira 50 anos atrás. Tendo recebido um país que estava pronto para crescer, e beneficiando-se de conjuntura internacional infinitamente melhor que a do governo anterior, soube e pôde ousar com os aumentos reais do salário mínimo, e com o programa de renda mínima que é o Bolsa Família (muito parecido com o que, em outros tempos, fora imaginado pelo senador Suplicy).
Deu tudo certo - inclusive porque, entre as virtudes do presidente que se vai, deve-se incluir a sorte, capital precioso que um Napoleão sabia valorizar na justa medida. E o resultado é, simplesmente, o governo mais bem sucedido da nossa história republicana.
Mas, como ensinam os livros de psicologia e as mitologias seculares, o poder excessivo vira a cabeça das pessoas, e pode levá-las à desgraça. Ao final dos dois governos FHC, as instituições pareciam em melhor estado do que no princípio - tanto que aguentaram, sem o menor abalo, uma troca radical de comandos. Já não se pode dizer o mesmo da dose dupla de lulismo: o presidente paira numa espécie de aura sobrenatural, onde só enxerga o que quer, e de onde escolhe quem é amigo ou inimigo. O atual esquema de poder, repleto de músculos, caminhou na direção do personalismo. O que acontecerá daqui para a frente?
Temos um patrimônio acumulado nos últimos 18 anos - e um país que não é exatamente uma barquinha jogada na corredeira. Me lembro sempre de uma frase do grande Capistrano: "O Brasil é um país muito grande; não há nada que o salve; e não há nada que o perca."
Mas cada época histórica tem as suas exigências. A de agora não é simplesmente usufruirmos do crescimento do país e das benesses do governo. A ética e a verdade parecem sumidas no fundo do poço, soterradas pelos discursos de ocasião e por um triunfalismo barato.
Sim, avançamos, mas é preciso dizer a verdade - o que nem o governo nem a oposição estão fazendo. Quando a verdade desaparece, todos os valores vão sendo corroídos.
Foi o caso da poderosa União Soviética. Um dia, ela caiu sem um tiro, sem um empurrão de fora. Porque já não havia, ali, nem um pingo de verdade, e todos os bens da nação tinham virado joguetes nas mãos da companheirada.
LUIZ PAULO HORTA é jornalista.
domingo, 26 de setembro de 2010
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